Por Durval de Noronha Goyos

 

 Texto dedicado à memória do Embaixador J. C. Baena Soares

 

INTRODUÇÃO –

 

Os importantes temas da legitimidade das constituições e da independência das cortes constitucionais sempre estiveram presentes nas páginas de propaganda dos países imperialistas, com o objetivo de menosprezar as instituições das nações ou Estados alvo, de tal maneira a justificar sua ação predatória e, na mesma forma, desmoralizar a resistência interna de suas vítimas. A modalidade do fenômeno foi descrita mais recentemente como poder intangível e é nomeada, tipicamente, com um anglicismo desnecessário, “soft power”. Afinal, a superioridade linguística do inglês é um outro mito que serve ao mesmo propósito.

 

Desta maneira, abunda a perspectiva etnocêntrica no exame das questões, de maneira a ocultar a vertente diversa de outras culturas, de negar sua contribuição civilizatória e de afirmar mitos e falsidades a serviço de uma pretensa superioridade. Esta visão justificaria “o fardo do homem branco”, ou seja, a hipócrita licença da rapina, do genocídio, do estupro, do tráfico institucional de drogas, da discriminação, da escravidão, das guerras de conquista territorial, além de outros feitos nefários, abundantemente registrados pela história.

 

Como o fenômeno do imperialismo persiste nos dias de hoje, sedimentado que está no mundo unipolar, dirigido pelos Estados Unidos da América (EUA), o atual poder hegemônico, a propaganda naquele sentido não apenas se manteve, mas aumentou na medida que há resistências a tal dominação. Poderia surpreender a alguns observadores mas, no mister propagandístico, as potências imperialistas continuam a se valer dos meios acadêmicos, que deveriam por definição manter uma certa objetividade. Da mesma forma, a imprensa prostituída persiste a veicular as versões espúrias.

 

Organizei a apresentação desta conferência da seguinte maneira:
a) Esta Introdução;
b) Sobre a legitimidade das constituições;
c) Sobre a independência das cortes constitucionais; e
d)Conclusões.

 

SOBRE A LEGITIMIDADE DAS CONSTITUIÇÕES

 

Antes de adentrarmos na questão da independência das cortes constitucionais, faz-se necessário o exame da legitimidade das constituições. O positivismo jurídico, doutrina que floresceu na Europa em meados do século 19, época de ouro do imperialismo, contribuiu de maneira decisiva para ocultar muitos vícios legislativos da época, como também os de períodos anteriores. Segundo a referida linha de pensamento, a legalidade de uma norma advém de fatores sociais, os “fatos da vida”, o que tudo justificaria, sem nenhum limite de ordem filosófica, sociológica, moral, ética ou deontológica, por exemplo. Ela coonesta a força bruta da autoridade.

 

Tal fetichismo pretensamente jurídico tem provocado reações de oposição de setores nacionais ou de diversos segmentos sociais comprometidos com a ideia de Justiça, identitários ou não. Elas ocorrem mundo afora através dos tempos. A sabedoria popular logo reagiu à opressão ilegítima em todo o mundo. Em Nápoles, há um aforisma “‘A forza supraffà ‘a giustizia”, ou a força supera a justiça, que registra a perspicácia do povo.

 

Da ilegitimidade, decorrem algumas indagações, que necessariamente se seguem. Se uma dada constituição não é legítima, porque deve ela ser obedecida, pergunta-se. No mesmo caso, como ficaria o universo jurídico infraconstitucional, se não comprometido pela ilegitimidade na origem. Tratar-se-ia de uma fraude pública? Como se interpretaria uma constituição ilegítima e como reformá-la?

 

São muitas as características que dão legitimidade às constituições, mas as principais, em meu entender, são aquelas que atendem requisitos essenciais tanto quanto à substância como quanto à forma. Menciono as seguintes, que me parecem as mais relevantes:
a) Soberania real e não apenas nominal do Estado relevante;
b) a representatividade, ou expressão, de todos os setores componentes da população do Estado na sua feitura;
c) a promoção da isonomia, isto é, a igualdade de todos os cidadãos perante a Lei;
d) a horizontalidade, ou seja, a distribuição equitativa dos poderes de gestão a todos os segmentos sociais; e
e) o consentimento dos governados, expresso de maneira livre e democrática.

 

A Magna Carta, tida pelos propagandistas como a mais antiga constituição do mundo, foi resultado de um acerto entre o rei da Inglaterra e os barões feudais, datada de 1215. Isto não é verdade, já que outras a precederam, como aquela que foi objeto de um acordo entre o profeta Maomé e os habitantes de Medina, firmado séculos antes. A constituição islâmica não tratava dos direitos fundamentais, questão que estava no escopo das normas do Corão. Pelo menos, a constituição islâmica só poderia ser alterada por Allah, O Soberano, o que evitou as aberrações subsequentes à Magna Carta, as quais resultaram numa constituição não escrita, que ninguém conhece e sujeita a abusos.

 

Antes, todavia, a China da Dinastia Chin, no ano 221 a.C., os governantes estabeleceram um código de direitos de natureza constitucional afirmando o princípio da isonomia, combatendo privilégios e protegendo o povo do arbítrio dos poderosos, com base nos ensinamentos dos filósofos da chamada escola legalista. Um sistema judiciário com direito à apelação foi contemplado. Também neste particular, a China liderou o mundo no processo civilizatório. Note-se que Confúcio (551 – 478 a.C.) e os seus discípulos se opuseram aos legalistas por entender que a educação é mais eficaz do que a repressão legal. Também neste particular, os ensinamentos de Confúcio compreendem igualmente aspectos constitucionais e fazem parte das instituições fundamentais que representaram uma efetiva constituição.

 

Nem mesmo na Europa foi pioneira a Magna Carta, que não dispunha sobre princípios, já que as normas constitucionais normandas, na Sicília, datadas de 1140, e posteriormente consolidadas na Constituição de Melfi (Constitutiones Regni Siciliarum), de 1231. Dentre os direitos constitucionais assegurados nos seus 204 artigos estava a isonomia dentre os cidadãos; o devido processo legal; a proteção do povo contra
abusos dos poderosos e, de maneira pioneira naquele continente, a ordem econômica, a organização do poder judiciário e da administração pública. A Constituição de Melfi representa uma evolução da organização jurídica do Estado, a partir do “Corpus Iuris Civilis” de Justiniano.

 

Uma análise das primeiras constituições irá revelar que  aquelas que, mais de perto, obedecem aos critérios acima mencionados são a chinesa da Dinastia Chin e a chamada Constituição de Melfi. Aquela islâmica é um estatuto teocrático e os 63 artigos da Magna Carta não tratam de princípios legais, mas de questões prosaicas como a regulamentação do uso feudal das florestas, dos direitos da aristocracia, do papel da Igreja, da tributação das atividades econômicas e da administração municipal. O seu artigo mais importante, o de número 39, diz respeito ao devido processo legal, de resto já contemplado pelo Direito romano e pelo Direito Hindu, séculos antes.

 

Em tempos mais recentes, a constituição dos EUA de 1787 foi aprovada apenas por homens brancos proprietários de bens imóveis. Vigia no país a escravidão dos elementos negros trazidos da África e estava em pleno andamento o brutal genocídio das populações nativas. Os tribunais eram compostos de homens brancos. A 13ª emenda à constituição dos EUA, de 1865, acabou parcialmente com a escravidão no país, mas foi a 15ª emenda, de 1870 que conferiu direitos de cidadania a todos os ali residentes.

 

Foi a 14ª emenda, de 1868, que afirmou a cláusula do devido processo legal de maneira aplicável a todos. Ressalte-se que o final da segregação racial naquele país deu-se apenas por legislação ordinária federal, mediante o “Civil Rights Act”, de 1964, após diversas ações judiciais movidas por entidades de defesa de direitos civis, como “Brown vs. Board of Education” de 1954. Por sua vez, o direito de voto às mulheres foi apenas conferido por ocasião da 19ª emenda, de 1920. Em função dos problemas raciais diversos e da opressão histórica das populações nativas, até hoje a constituição dos EUA padece de problemas de consentimento de parte de sua população.

 

Por sua vez, o Brasil teve 7 constituições distintas desde a Proclamação da Independência, no dia 7 de setembro de 1822: as de 1824, 1891, 1934, 1946, 1967 e a de 1988. As constituições de 1824, 1891, 1934 e a de 1967 tiveram vícios de representatividade, acumulados ou não com outro(s). Aquela de 1891 seguiu a abolição da escravidão, mas manteve a exclusão do voto feminino, vício superado na constituição de 1934, que padeceu de problemas de representatividade na sua feitura e teve uma duração efêmera.  A primeira constituição verdadeiramente democrática do Brasil foi a de 1946, revogada após o golpe de Estado de 1º de abril de 1964, havido com o impulso dos EUA. Aquela do ano de 1988, que substituiu o espúrio documento ditatorial de 1967, teve o seu mesmo perfil democrático.

 

A partir de meados do século 19, despertou-se a vocação imperialista dos EUA, com a anexação de mais da metade do território da República Mexicana, numa guerra de conquista. Seguiu-se logo em seguida o envolvimento oficial do país, ao lado da Inglaterra, na produção e tráfico de ópio para a China, o que resultou em diversas guerras nesta última, com finalidades de espoliação econômica. Em 1898, os EUA lançaram-se em guerra contra a Espanha, com o objetivo de conquista do remanescente de seu império colonial.

 

A ação inicial desta guerra deu-se em Cuba, na primeira constituição do país, em 1901, através da chamada Emenda Platt, de acordo com a qual era conferido o direito dos EUA ali intervir em caso de instabilidade política, para com o objetivo da cessão de território para uma base americana na ilha. A Emenda Platt, ademais, dava a estrutura legal para o firme controle, pelos EUA, das finanças públicas, relações exteriores e ordem pública cubanas.

 

A partir daquele momento, os EUA intervieram em dezenas de países, mundo afora, de maneira direta ou por seus pressupostos locais, sempre determinando de maneira direta ou indireta uma nova ordem constitucional. Na América Latina, quase todos os países tiveram esta intervenção espúria, até mesmo mais de uma vez, em alguns casos. O professor Noam Chomski denominou a ação nefanda dos EUA em Honduras, na Costa Rica, na Guatemala e em Salvador de “devastação”. O que dizer, então das intervenções na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, no Equador, em Granada, no Paraguai, no Peru, na República Dominicana e na Venezuela?

 

Também noutros continentes houve agressões assemelhadas em sua virulência, como na África, no Oriente Médio, na Ásia e mesmo na Europa. O resultado foi invariavelmente o mesmo. Onde pisa o coturno da opressão dos EUA, tarda a florescer a liberdade e se instala a desesperança, a desgraça e a miséria. Desta maneira, os EUA passaram a representar uma impactante força global de corrupção, a maior já registrada pela história, que tem vindo a afetar a ordem constitucional de muitos países, particularmente os que não são seus clientes.

 

Ressalte-se ainda que algumas das constituições de terceiros países tiveram grandes problemas em suas gênesis, na situação posterior à II Guerra Mundial e durante a chamada Guerra Fria. Todas as constituições resultantes destes episódios melífluos são viciadas pela inexistência, em sua adoção, da soberania, da representatividade, do consentimento, da horizontalidade e da isonomia.

 

Um caso emblemático ocorreu no Japão. A Constituição japonesa de 1947 foi minutada, imposta e promulgada de fato pelas forças militares de ocupação dos EUA mas, curiosamente num monumento à hipocrisia e à falsidade, principia o seu preâmbulo com “Nós o povo japonês, agindo através de nossos representantes eleitos na Dieta Nacional”. Imposta pelas forças de ocupação, a Constituição foi aprovada no nadir da história do país.

 

Mais de 1 milhão de pessoas morreram de inanição no ano de 1946, a inflação galopante chegou a 300% e pelo menos 70 mil mulheres japonesas foram forçadas à prostituição nas Associações de Recreação e Diversão, escravas a servir, cada uma, cerca de 60 clientes por dia, em prol de uma entidade de capital aberto, num inferno capitalista. Concomitantemente à assembleia constituinte, realizaram-se os Tribunais de Tóquio para os crimes de guerra, os quais foram injurídicos pelo uso de leis ex-post facto e pelo parcial clima de vendetta. Os processos intimidavam o povo japonês e não contribuíram para um clima condizente aos trabalhos constitucionais.

 

Por sua vez, na Itália, a Constituição de 1947 foi o resultado de um compromisso entre as preponderantes forças democráticas domésticas e aquelas a soldo dos interesses dos EUA, que se lançaram a campo para impedir a liderança das primeiras. Tal acordo político foi o produto das circunstâncias da chamada Guerra Fria. O resultado tornou a Itália um Estado cliente dos EUA e sob ocupação militar até os dias atuais, mantido até mesmo ao custo de ações de desestabilização de governos italianos e assassinato do primeiro-ministro Aldo Moro em 1976. Foi embalde a conclamação do grande estadista e camarada, Palmiro Togliatti, na última sessão da constituinte, no sentido de que “era o dever de todos atentar para os interesses do povo italiano, das classes trabalhadoras, da democracia e da República”.

 

A Constituição da Índia de 1949 teve impecáveis credenciais de legitimidade. Ela pôs fim a uma cruel ocupação imperialista genocida do país de cerca de 200 anos, a qual acabou com a sua economia, originalmente a maior do mundo. Dezenas de milhões de pessoas morreram de fome com a conversão da maior parte das áreas agricultáveis para a produção do ópio, que era contrabandeado pelos ingleses para a China, ali também causando miséria. O movimento anti-imperialista foi liderado por Mahatma Gandhi.

 

O preâmbulo da Constituição indiana foi escrito pelo estadista Jawarhalal Nehru, discípulo de Gandhi, e dispõe: “Nós, o povo da Índia, tendo resolvido constituir uma república socialista, soberana e democrática, assim como assegurar a todos a justiça social, econômica e política; a liberdade de pensamento, expressão, crença e fé; a igualdade social e de oportunidade; e a fraternidade, garantindo a dignidade do indivíduo e a integridade da Nação…”

 

Logo em seguida, no dia 1º de outubro de 1949, foi fundada a República Popular da China, a qual terminou com os longos 100 anos de agressão imperialista e com os 22 anos do regime títere do Kuomitang. O camarada Mao Zedong já havia observado que “a história da transformação da China em país semicolonial e colonial devido à ação do imperialismo em conluio com o feudalismo chinês é também a história da luta do povo chinês contra o imperialismo e os seus lacaios”.

 

No ano de 1954, foi adotada uma constituição na República Popular da China, pelo Segundo Congresso do Povo, que  funcionou na qualidade de assembleia constituinte. A nova constituição adotou o princípio do centralismo democrático, mas incorporou o princípio tradicional do “LI”, da filosofia confuciana, segundo o qual “o indivíduo é subordinado à organização, a minoria à maioria, o nível baixo ao nível alto, o governo local ao governo central”.

 

A Constituição da República Portuguesa de 1976 foi um produto da chamada Revolução dos Cravos de 1974, que pôs fim a décadas de um opressor regime tanto fascista como imperialista. Os trabalhos da Carta Maior que instalou a democracia foram liderados pelos estadistas, o Dr. Mário Soares e o camarada Dr. Álvaro Cunhal e tiveram o respaldo da Nação. O documento final, que tem o pleno perfil da legitimidade, declara à guisa de motivação, em seu preâmbulo, que “a batalha pela consolidação das liberdades exige firmeza na defesa das posições essenciais e elevada consciência política e cívica no uso da liberdade”.

 

A Constituição do Brasil de 1988 atendeu aos requisitos de legitimidade supramencionados, muito embora de maneira que tem sofrido certas críticas acertadas. O número elevadíssimo de emendas ao seu texto original, superior a 100, evidencia alguns, mas não todos os problemas existentes. Acresce que a ordem constitucional brasileira sofreu um violentíssimo abalo com um golpe de Estado de inspiração dos EUA, em conluio com setores nacionais, contra a presidente Dilma Roussef, em 2016. O golpe foi tanto político como judiciário e resultou em 2 governos ilegítimos, de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, meros títeres dos EUA. A ordem constitucional brasileira está sendo no momento reconstruída, a partir das eleições de 2022 e a duras penas.

 

Outra constituição recente com plena legitimidade foi aquela da República da África do Sul, de 1996, que terminou com o regime racista do apartheid, apoiado pelos EUA e pela Inglaterra. O seu preâmbulo afirma “nós, o povo da África do Sul reconhecemos as injustiças do passado, honramos aqueles que sofreram por justiça e liberdade em nosso país para… estabelecer uma sociedade baseada em valores democráticos, justiça social e direitos humanos fundamentais…”

 

Foi mediante a inspirada liderança de Nelson Mandela e de Thabo Mbeki e à bandeira humanista do Congresso Nacional Africano (CNA), que se levantou o povo sul-africano em firme resistência ao arbítrio, à opressão e ao genocídio, numa dura luta de quase meio século. A corte constitucional do país, já democrático, ao celebrar o décimo aniversário da liberdade nacional, lembrou que os valores do liberalismo individual do passado foram sistematicamente negados à maioria da população, na triste sina do capitalismo.

 

Por sua vez, uma análise sóbria e imparcial da formatação, programação e aprovação da Constituição de Cuba de 2019, irá revelar o seu caráter democrático e popular, pelo amplo processo de esclarecimentos, de consultas como também pelo referendo de aprovação. Da mesma maneira, quanto ao conteúdo, o apelo democrático e popular revela-se evidente pela robusta inspiração e combativo apego aos valores da liberdade, da independência, da justiça social, da solidariedade humana e da consciência nacional.

 

SOBRE A INDEPENDÊNCIA DAS CORTES CONSTITUCIONAIS

 

A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) adotou, mediante as resoluções 40/32 e 40/146, de outubro e dezembro de 1985, respectivamente, um elenco de Princípios Básicos sobre a Independência do Judiciário, doravante denominado simplesmente “Princípios”. Em seu preâmbulo,sempre uma exposição muito útil para a exegese do texto, os Princípios admitem explicitamente que existe um hiato entre os enunciados e a situação de realidade que se apresenta.

 

Os Princípios declaram, com toda propriedade, que não deve haver interferência indevida com o processo judicial. Ademais, o documento afirma que o princípio da independência do judiciário requer que seja assegurada a condução equitativa dos procedimentos judiciais e que os direitos das partes sejam respeitados. Por sua vez, os magistrados devem se conduzir de maneira a preservar a dignidade do ofício, assim como a independência e a imparcialidade do judiciário.

 

De outro lado, o Conselho da Europa, uma organização internacional com vínculos informais, mas reais, de natureza ideológica com a União Europeia, elencou as suas diretrizes sobre a Ética e a Deontologia da Magistratura, em ato que indica os princípios básicos a governar a atividade jurisdicional, indicando que os deveres dos magistrados vão além das regras. Tais parâmetros de resto constam de diversos outros diplomas internacionais subsequentes. São eles:

a) a independência no exercício das funções da judicatura, que incluem a liberdade de consciência, mas também medidas destinadas a minimizar o risco de b) corrupção e influência externa;
c) a imparcialidade, a essência da judicatura, que é fundada da objetividade dos fatos relevantes;
d) a integridade, que é a antítese da corrupção;
e) a isonomia dos sujeitos, que é a igualdade de todos perante as leis;
f)a competência e a diligência no exercício das funções; e
g) o decoro, a ser mantido dentro e fora dos tribunais.

 

A realidade, contudo, é que por razões subalternas de ordem política, bem como por outras decorrentes da fraqueza do caráter humano, ou ainda por desequilíbrios econômicos e sociais, as violações a tais meritórias normas deontológicas são múltiplas e ocorrem numa escala global, em maior ou menor escala. Assim, a independência das cortes constitucionais, em nosso caso o Supremo Tribunal Federal (STF), enfrenta até os nossos dias desafios de grande monta mundo afora, e não apenas no Brasil.

 

Frequentemente, a propaganda dos Estados imperialistas apresenta o próprio ordenamento jurídico interno como “democrático”, em contrapartida àquele dos demais, em particular dos adversários, que seria “ditatorial”. Hoje, os inesgotáveis recursos da mediocridade expressa na mídia social encarregam-se de disseminar tal dicotomia fantasiosa. Assim, a propaganda falaciosa e mendaz adquire foros de verossimilhança no fértil terreno da ignorância, adubado pela má-fé.

 

Poucos sabem, todavia, que na alardeada “democracia” inglesa, o Judiciário não pode rever atos do Parlamento. Ademais, ali não é reconhecida a divisão dos poderes, já que o Legislativo nomeia o Executivo, que por sua vez indica os membros do Judiciário. Acrescente-se que a Constituição inglesa não é escrita, faltando-lhe a legitimidade, já que assentada em valores e padrões sociais pouco transparentes, afirmados pelos preconceitos de classe sedimentados há séculos. Como resultado, o povo desconhece quais sejam os seus direitos constitucionais, o que limita o seu acesso à prestação jurisdicional do Estado.

 

Nos EUA, os juízes da Corte Suprema são indicados por preferências partidárias, pelos presidentes, aos quais são eles fiéis, mais do que ao Direito e às próprias consciências. Deixam, portanto, de ser independentes. Um caso típico foi o da eleição  de George W. Bush a presidente, perdida pelo voto popular a Al Gore, conforme decisão altamente questionável da Corte Suprema. De fato, no caso Bush v Gore, 531 U.S. (2000), os juízes decidiram em linhas conforme os interesses do partido que os nomearam.

 

Infelizmente, este fenômeno tornou-se universal. No Brasil, os membros do STF também são nomeados de acordo com as preferências do chefe do Executivo e os seus votos posteriores refletem com frequência esta lealdade. Quando ela falha, a conduta do magistrado é criticada nos meios políticos e cuidados são tomados para que tais “erros” na escolha dos candidatos não sejam repetidos no futuro. Tristes tempos. Nos países comunistas, a conduta dos juízes das cortes constitucionais acompanha aquela dos países capitalistas, imperialistas ou não.

 

Se o judiciário dos EUA fosse verdadeiramente independente, então por mais de 200 anos os indivíduos responsáveis por governos e ações criminosas diversas daquele país na esfera internacional teriam sido levados à barra dos tribunais e, certamente, condenados pela magistratura, como o foram de maneira, tanto categórica como inapelável, pela consciência humanística internacional e pelos registros objetivos da História.

 

Por outro lado, nem sempre a aplicação da isonomia pela magistratura ao público em geral é possível, devido às enormes limitações à prestação jurisdicional do Estado em países como a Inglaterra. Ali, os custos altíssimos e os riscos decorrentes da sucumbência fazem com que seja impossível ao cidadão de recursos limitados litigar contra uma parte com plenas condições econômicas. A assistência judiciária é parca e administrada por   governos que limitam os recursos, o que resulta em sua virtual indisponibilidade para a cidadania.

 

Deve-se ainda dizer que a competência no exercício das funções fica prejudicada pela demora no trâmite e julgamento dos casos submetidos ao judiciário em vários países. Isto é a regra no Brasil. Da mesma maneira, países europeus, como Portugal, Grécia e Itália, têm problemas para assegurar o rápido trâmite das demandas, o que é uma fonte de injustiças. Como afirmou, há cerca de 100 anos, Rui Barbosa, o grande patrono da advocacia brasileira: “a Justiça tardia nada mais é do que a injustiça institucionalizada”.

 

Não é demais lembrar que a imparcialidade da magistratura é frequentemente afetada, em todo mundo, por campanhas no âmbito da opinião pública contra ou a favor de interesses objeto de disputas judiciais. Estas campanhas visam influenciar a magistratura para posições desejadas pelos seus responsáveis, no que não raramente são bem-sucedidas. Nestes casos, o juiz busca o seu convencimento fora dos autos, nos meios de formação da opinião pública, o que é inaceitável. Mencione-se ainda que, nos EUA, em cerca de 50% dos Estados, o magistrado é eleito, o que afeta claramente a sua imparcialidade, como em todo processo político.

 

A influência direta dos governos no judiciário, possível devido às relações frequentemente incestuosas entre os poderes, afeta a imparcialidade dos magistrados, como o sucedido no caso de Julian Assange, na Inglaterra. Neste caso, houve um conluio fraudulento entre os governos dos EUA, da Inglaterra e da Suécia, para obter um resultado de interesse do primeiro. Por outro lado, os atos criminosos revelados por Assange não ensejaram nenhum processo judicial naquelas jurisdições.

 

Um fenômeno que parece singular ao Brasil diz respeito à questão do decoro de parte expressiva dos membros da magistratura, notadamente dos tribunais superiores. Confúcio, há cerca de 2.500 anos, já recomendava: “não olhe ao que é contrário ao decoro: não ouça ao que é contrário ao decoro; não
fale o que é contrário ao decoro; não aja em desconformidade ao decoro”. No entanto, atualmente, um observador externo ou mesmo doméstico, com o mínimo de lucidez e pundonor irá certamente se escandalizar com certas práticas impudentes de alguns não poucos juízes brasileiros.

 

De fato, alguns juízes brasileiros permitem-se outras atividades remuneradas; dedicam-se a atividades estranhas à magistratura relegando suas funções a assessores; envolvem-se em conúbios políticos e empresariais que podem afetar de maneira negativa a sua imparcialidade; expõe-se de modo pouco decorosa aos veículos de imprensa, aos quais inclusive dão opiniões a respeito de casos sob sua jurisdição presente ou potencialmente futura; permitem que seus parentes advoguem em suas jurisdições, sem se declarar impedidos por conflito de interesses; facilitam o lobby judiciário, ou a advocacia administrativa; aceitam seletivas audiências ex-parte; são excessivamente morosos na condução dos casos; e usam o poder de ofício para legalizar as suas sinecuras, benefícios e prebendas, como se não fosse ele reservado para o serviço público.

 

CONCLUSÕES –

 

Do aqui exposto, resulta claro que, ao contrário do que alega a propaganda imperialista, são alguns países em desenvolvimento, socialistas ou comunistas, que têm um regime constitucional revestido de legitimidade. Por seu lado, as credenciais a respeito dos países imperialistas são pouquíssimas e refletem o seu passado de opressão, espoliação, tirania, genocídio, escravidão e injustiça, frequentemente em conluio criminoso para os seus fins melífluos.

 

Por outro lado, a questão da independência das cortes constitucionais, mundo afora, apresenta um quadro horizontal bastante abrangente e generalizado de limitações quanto à imparcialidade, corrupção política e, em alguns casos, como no Brasil, quanto ao decoro de alguns setores da magistratura. Tais limitações existem tanto nos países capitalistas, como nos socialistas ou comunistas; tanto nos países em desenvolvimento, como nos países desenvolvidos. Como diz o aforisma latino, “nem vitiis nemo sine nascitur”, ou ninguém nasce sem vícios.

 

Todavia, pelo menos nas questões da independência das cortes, de uma maneira geral, incluindo as constitucionais, e da imparcialidade dos magistrados, uma profunda reforma se apresenta no horizonte do futuro próximo. Ela beneficiará todo o mundo e virá com a substituição do elemento humano na magistratura e no ministério público pela inteligência artificial, a programação e a computação. Este elemento tecnológico poderá eliminar o viés de imparcialidade e outros vícios característicos do ser humano, e certamente acabará com a impudência, a infâmia, a parcialidade e a ignomínia de certos setores da magistratura.