Por: Jorge Bezerra

Só existe ética quando há liberdade!

Trata-se de uma provocação que faço com o leitor. “Quando eu era criancinha pequena em Barbacena…” aliás, em Fortaleza, com meus 12 anos, minha mãe chegava com uma frase que eu odiava: “Não estou gostando dessas suas companhias!” Ficava com raiva, não concordava com ela, mas a experiência de vida e o tempo são implacáveis. Normalmente minha mãe acertava. Embora hoje eu reconheça o seu acerto, acho que deveria ir até ela e dizer que acertara mais uma vez.

Vou contar outra da minha mãe que eu também não gostava. Quando ela notava que eu estava usando um material escolar, tipo uma régua, lápis, etc. que não eram meus, vinha com a fatídica pergunta: “de quem é essa régua?”. Respondia que tinha achado no pátio da escola, que não sabia como aquilo apareceu por ali ou outra desculpa qualquer. A verdade não era nada daquilo.

Pois é, eu havia roubado aquele material. Vinha a sentença da minha mãe: “volte e devolva ao dono, o que é seu é seu, o que é do outro é do outro”. Se no “interrogatório” da minha mãe minha situação ficou ruim, imensamente pior era o momento da devolução da régua. Era constrangedor, vergonhoso. Em alguns casos o colega (o verdadeiro proprietário) falava em alto e bom som, “ele me roubou ontem e está devolvendo hoje!”. Aquilo trazia muito sofrimento para mim.

Algumas ciências humanas e sociais (psicologia, sociologia, antropologia, etc) afirmam que boa parte da personalidade de uma pessoa é formada dos seis aos oito anos de idade. Nesse período, a criança recebe modelos mentais de seus familiares e das pessoas mais próximas (professores primários, padrinhos, etc.). Independentemente da porcentagem que uma criança retém para a formação de sua personalidade, o homem, no sentido antropológico, continua aprendendo e apreendendo coisas até a sua morte. Esse aprendizado é a base de sustentação de todas as nossas ações e reações ao longo da vida. Uma vez adultos, estas são facilmente percebidas pelas pessoas que não fazem parte do nosso cotidiano, fazendo com que elas se aproximem ou se afastem de nós.

Saindo do passado e chegando ao presente, certo dia recebi um convite para um trabalho. Era numa organização de ensino técnico, de âmbito nacional, onde o Diretor de Ensino Corporativo estava criando um grupo especial de profissionais, preferencialmente professores que atuassem na área de conhecimento do mercado varejista. Formou-se uma equipe com cinco profissionais, cuja missão era reestruturar o processo de oferta de novos cursos profissionalizantes. Estávamos bem instalados, com ótimas condições de trabalho. A organização ocupava um edifício de dez andares, não havia salas convencionais e sim andares com baias. Era o início do uso das “empresas sem paredes”, onde num só andar havia diferentes setores, e não obrigatoriamente do mesmo departamento.

Apesar de ter um horário de expediente (entrada e saída) normatizado, ao chegarmos na organização, no andar em que trabalhávamos, havia um terminal onde colocávamos a matrícula e a senha, caracterizando assim a sua entrada no trabalho. Mesmo assim, tínhamos flexibilidade caso fôssemos visitar uma das unidades da organização ou algum fornecedor, escola, etc. Uma vez agendado, éramos dispensados do registro de entrada ou saída do expediente.

O registro de entrada/saída era uma das práticas aceitas pelos funcionários. Apesar de constar nas normas (RH/DP), aquilo não estava no Código de Ética da organização, até porque as demais empresas do mercado adotam modelos semelhantes. Salvo uma pessoa que nunca foi empregado, um profissional tem conhecimento e consciência de que há um registro de entrada/saída na empresa onde cada organização adota o seu sistema. Sendo um costume, uma prática, faz parte da cultura. A ética está presente, é da empresa para o indivíduo, cabe ao profissional (você), aplicando a sua moral, praticar ou não aquilo e, claro, receber as consequências (positivas/negativas) da escolha. Mário Sérgio Cortella nos ensina que há três perguntas morais para tomarmos decisões: Eu quero? Eu posso? Eu devo?

Segundo Cortella, algumas vezes fazemos coisas que queremos (nossa vontade), mas que não podemos (limitações) ou não devemos (discernimento). Porém, algumas vezes fazemos coisas que podemos, mas que não queremos nem devemos. Assim também fazemos coisas que devemos, mas que não queremos ou podemos.

O processo de tomada de decisão pode trazer alívio, felicidade ou sofrimento, pois sempre terá consequências para ambos os lados. Em seu livro sobre estratégia A Arte da Guerra, o autor Sun Tzu escreve que “a guerra, quanto mais longa, mais o armamento torna-se pesado”; ou seja, é um processo que deve ser rápido, sem pressa, mas “cirúrgico”, preciso, e sem possibilidade de posteriores arrependimentos.

Voltando ao nosso caso, desses cinco profissionais que compunham o meu grupo, dois não se entendiam muito bem. Havia uma “guerra de vaidades” entre ambos, algo como “eu tenho mais conhecimento do que você”, “seus métodos são ultrapassados”, etc. Vamos chamá-los de José e João, os rivais; Pedro e Paulo, os outros dois elementos da equipe, para uma melhor identificação por parte do leitor.

Ao chegar naquela manhã, com exceção de João, todos da equipe estavam presentes. Quase meia hora, após da minha chegada, recebo um telefonema na minha mesa: era João me pedindo um favor. “Vou chegar atrasado. Por favor, digite a minha matrícula e senha no terminal de entrada do expediente”. Ele argumentava que estava “preso” no trânsito, e para não se atrasar mais ainda, estava pedindo aquela ajuda, “pode ser, meu parceiro?”. Respondi que não havia problema em se atrasar, bastava uma justificativa à chefia e tudo bem. João insiste: “quebre esse galho pra mim”. Voltei a falar sobre a justificativa e, finalmente, disse que não iria fazer. Cheguei a pedir desculpas e encerrei a ligação.

O telefone volta a tocar na minha mesa. Era João, desta vez pedindo para eu chamar o Pedro, que estava ao meu lado. Passei o telefone pra ele, conversaram rapidamente, percebi Pedro fazendo uma anotação num pequeno pedaço de papel, dirigiu-se até o terminal na entrada do nosso andar, fez a digitação, voltou pra mesa e informou ao João “tudo certo”.

Alguns dias depois fomos convocados para uma reunião de KPI (desempenho), uma vez que o distanciamento da meta de produção tinha aumentado e o prazo final estava a cada dia mais curto. É o tipo de reunião tensa, estressante, não se fala muito de causas e sim de efeitos, os números parecem maiores e irracionais a cada leitura de relatório, e o calendário é um placar onde o “nosso time” sempre está em desvantagem. Vicente, o Diretor de Operações, é imperativo, “a meta tem que ser alcançada. Senão, cabeças irão rolar!”. Era como “jogar gasolina na fogueira”, cada um protegendo o seu trabalho, tensão total. Foi quando José pediu a palavra e disse em alto e bom som, “eu sei porque não estamos próximos da meta”. Silêncio na sala. Vicente exige que ele explique aquela citação. “Alguns elementos desse grupo não estão produzindo como deveriam. Chegam atrasados, fingem que trabalham e encobrem o erro do colega”. Mais silêncio. José é impiedoso: “tenho provas que registraram um colega digitando a matrícula e senha de um outro colega que estava fora da organização, tendo chegado duas horas após o registro de entrada no terminal do nosso andar”.

Vicente recebe de José fotos com data e hora de um registro no terminal (Matrícula: 7878, 14/10/2010, 08h25min), mais um extrato com matrícula/senha, onde a entrada pelo salão foi feita quase duas horas após o registro (14/10/2010, 10h12min). No terminal de registro de entrada e saída havia uma câmera de vídeo, como também uma na entrada do andar onde havia as baias dos funcionários. A matrícula 7878 era de João. A foto no terminal de entrada era de Pedro.
Por ser uma “empresa sem paredes”, toda aquela conversa que tive com João logo após ter passado o telefone pro Pedro foi acompanhada por José, inimigo de João. José havia solicitado ao pessoal de T.I. responsável pelo Circuito de TV as imagens do terminal e da entrada no salão. José então trouxe as fotos consigo e as entregou ao Diretor de Operações Vicente.

Vicente encerra a reunião, solicitando que permaneça no local José, João e Pedro. Resumo da ópera: João, Pedro e um funcionário do RH (registros) foram todos demitidos.

Como um “tiro a queima roupa” perdemos dois colegas. O funcionário (RH), que não estava diretamente envolvido naquela questão, recebeu uma “bala perdida”, que até hoje não sabe porque perdeu aquele emprego.

O clima organizacional da seção ficou insuportável. Olhávamos para José com vários sentimentos – raiva, pena, maldade, egoísmo etc. – mas que nada daquilo poderia reverter as decisões do Diretor de Operações. O fato havia sido consumado.

Naquela noite fiquei me perguntando por que eu não havia sido demitido, já que o primeiro telefonema foi para mim. Após reflexões, veio a resposta que ressoa perfeitamente com meus valores. Não fui demitido porque uma vez minha mãe me mandou devolver uma régua que havia roubado de um coleguinha na escola, tudo isso acompanhado de frases que continuam ecoando na minha cabeça: “o que é seu é seu, o que é do outro é do outro”; “faça o certo”.

Segundo Aristóteles (384 – 322 a C), “a dor mais antiga do mundo é da consciência”, e continua: “para o homem virtuoso, a lei é dispensada”. Entendo e aceito que não haja pessoa 100% honesta, correta, de reputação ilibada. Porém, a verdade, assim como a ética e a moral, são processos de evolução e busca contínua e constante.

Nas aulas de mestrado ouvíamos a afirmação de que o mercado “são todas as relações que interferem na sociedade”, uma vez que ele, o mercado, como se fosse uma vitrine, mostra vários aspectos que precisam ser analisados por seus atores. Entre o ser e o ter, surge o parecer, confundindo escolhas e decisões. Quando lemos “a mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”, percebe-se a força de uma imagem atrelada ao status de uma pessoa, onde o processo de escolha é totalmente livre, fazendo com que qualquer um de nós tenha o poder de julgar, condenando ou absolvendo.

O professor Paulo Serrano em suas aulas e palestras enfatiza os riscos de uma decisão. Em alguns casos, a ousadia é posicionada na ponta da lança. A escolha pode até ser fruto de um arcabouço de modelos e conhecimentos alicerçados ao longo da vida, mas o momento da decisão é conjuntural, presente e imediato. Exige coragem. O medo – ou a falta de iniciativa – travam esse processo. Paulo Serrano cita André Gide ao dizer que “o homem só pode descobrir novos oceanos se tiver coragem de perder a terra de vista”. E a ética, para existir, exige liberdade.

Por fim, a ética e a moral devem ser exercidas entre os humanos. Somos animais gregários; fazemos parte de grupos, e em cada um deles temos papéis distintos. Temos a capacidade de criar amizades e inimizades (propositais), fazemos oposições e somos situações em diferentes ambientes. No entanto, carregamos os modelos mentais, os valores, dogmas, ritos e mitos que a nossa família nos mostrou desde criança, como se fosse uma argamassa alicerçando nossas ações, cujas opiniões de pessoas que gostamos ou não, invadem o nosso intelecto e nos deixam felizes ou tristes.

Apelando ainda para a filosofia, Étienne de La Boétie (1530 – 1563) diz: “só pessoas boas, têm amigos; pessoas desonestas têm cúmplices”. Que possamos a cada dia evoluir nas nossas condutas fazendo boas escolhas de amizades, carreiras e negócios.

Artigo revisado por Aline Marques Martins.

Notas rodapé:

[1] Administrador, professor universitário, consultor sênior na área de Gestão de Processos e Estratégia, palestrante de assuntos ligados à Ética Organizacional.

[1] Paulo Serrano: Engenheiro de Telecomunicações, Mestre, professor universitário, palestrante e consultor organizacional.

[1] Economista, Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais.